Ana C. é, até mesmo em seu nome, uma figura enigmática. A letra inicial do nome do meio, abreviada logo ao lado do prenome que divide com tantas outras, a destacava sem muito relevar de sua identidade. Era o C de seu Cristina, de seu Cruz ou de seu Cesar que Ana gostava de trazer junto à assinatura de seus poemas? Não fui capaz de achar resposta. Nem um nem outro eram segredo, Ana não vivia no anonimato, mas ainda assim a poeta preferia guardar para si mesma a intimidade completa de um segundo nome, mantendo-se parcialmente junta à todas as outras Anas, como em uma chamada escolar onde viria, depois de Ana B. e antes de Ana D., levantar a mão despercebidamente. Tanto de si mesma Ana mostrava em sua poesia, era como se quisesse também se esconder do mundo na medida do possível. É essa vontade contra-intuitiva de ocultar-se e revelar-se que vejo nas fotografias em que ela pousava com seus grandes óculos escuros, no seu semblante meditativo, no olhar provocador. É o que leio em seus versos inacessíveis, em sua sintaxe desconexa, em sua poética melancólica. É também o que sinto em visita à exposição sobre a autora na Caixa Cultural, intitulada À Mercê do Impossível. A mostra, que trouxe ao público grande parte do acervo de Ana, preservado hoje pelo Instituto Moreira Salles, teve refletida em sua montagem essa imagem misteriosa da escritora. O ambiente todo penumbrado, as relíquias de sua vida privada fora de seu contexto, seus versos escorridos por cumpridas lonas sombreadas que desciam do teto. Ana C. estava exposta, porém ainda, de certa forma, desconhecida. A presença de seus objetos pessoas indicavam que essa aura impenetrável, distinta em sua obra, caracterizava também sua vida privada. Nos depoimentos dos amigos e conhecidos, Ana é sempre descrita da mesma forma: uma mulher excepcionalmente bela, notadamente inteligente, tímida. Falam repetidamente de suas múltiplas personalidades – melhor ainda, das diversas personagens que incorporava ao próprio gosto, as diferentes peles “de menininha, de fatal, de senhora, de tímida, de distinta, de cafajeste”[i] que Ana vestia conforme o estado de seu humor ao ponto de, talvez, nem ela mesma saber qual aquela que melhor lhe caía:
Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina
E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?[ii]
Há, no entanto, elementos da memória de Ana que refutam sua fama de enigmática, apresentando-nos a autora como alguém a quem tal clichê não faz jus. Ana fora também estudante de letras da PUC-Rio nos anos 70 e, portanto, contemporânea daqueles que integravam a chamada “Geração Mimeógrafo”. O equipamento copiador pré-xerox era a imagem representante do estilo daqueles que tentavam aproximar a poesia dos leitores, “democratizando” a escrita por meio da distribuição em massa de seus textos pelas ruas da cidade. O uso da linguagem coloquial e o tratamento dos assuntos da cotidianidade, empregados em uma estética incomum na época, rendeu a esses jovens a alcunha de “marginais”, escritores à margem da corrente principal da literatura. Escreviam em uma época conturbada, em plena ditadura militar, sob a repressão da censura, e talvez por isso mesmo insistiam em revelar a beleza escondida no dia-a-dia, as preciosidades efêmeras do momento presente. Ana C. era desses, de dissecar suas aflições diárias em recortes da sua experiência existencial. Mesmo assim, parecia se destacar de seus pares, firmando-se em um outro lugar. Ana C. era ou não marginal? Amiga e organizadora da ontologia 26 Poetas Hoje, que reunia pela primeira vez, em 1975, os escritos daqueles autores, Heloisa Buarque de Hollanda confirma que também neste sentido Ana mantinha-se ambígua: pertencia àquela geração de escritores, nutria relações afetivas com eles, fazia parte da turma e, ainda assim, suas palavras destoavam das do grupo. A literatura da geração dos anos 70 identificava-se com o movimento da contracultura, buscava abrir novos caminhos, experimentar fazer-se descartável, improvisada, e, como colocaria um de seus maiores expoentes, Chacal, estava interessada em “fazer um pacto com a revolução, e não um diálogo com a tradição.”[iii] Por outro lado, a poesia de Ana Cristina era, em suas próprias palavras, “muito construída, muito penosa”, meticulosamente planejada e frequentemente reescrita, indicando uma maior preocupação estética, uma escrita mais literária, um flerte com a tradição, justamente o que os marginais rejeitavam.
Esse entre-lugar habitado pela poeta confirma sua singularidade. A escrita de Ana possuía muitas das características pertencentes também a seus conterrâneos, mas sua formação havia sido diferente. Mostrara o interesse pela escrita desde a mais tenra idade; fora, ainda adolescente, fazer intercâmbio na Inglaterra, de onde retornou leitora de escritoras como Sylvia Plath, Emily Dickinson e Katherine Mansfield; formou-se em letras e fez mestrado em comunicação; retornou à Grã-Bretanha para a pós-graduação em teoria e prática de tradução literária na Universidade de Essex; trabalhou como tradutora, jornalista, crítica literária. Ana estabelecera um diálogo com uma outra tradição, outros textos, outra cultura. Pensar as peculiaridades da sua escrita é entender essa mistura única de influências às quais a escritora foi exposta. Aqui é válido resgatar o conceito de intertextualidade tanto explorado por Bakhtin, Kristeva e Genette. O que esses pensadores se dedicaram a pesquisar foi justamente a troca existente entre os diversos interlocutores selecionados por cada leitor, aqueles autores com os quais escolhemos entrar em diálogo, cujas escrituras edificam a nossa própria escrita. O discurso, defende Kristeva, não é nada mais que uma “bricolagem” de retalhos entre o texto do mesmo e os textos dos outros, além do texto social e histórico (portanto nosso contexto cultural). A própria imagem usada por Genette para intitular seu principal trabalho, Palimpsestes, é a do Palimpsesto, esse papiro cujo texto é apagado para que ele possa ser reutilizado, mas que fica marcado pelas inscrições que foram algum dia ali gravadas. É ali, em meio à incorporação de um elemento discursivo ao outro, que se dá, como posto por Leminski, essa “telepatia com todo um passado” que é a literatura.
Ana C., por esse ponto de vista, construiu uma subjetividade que resulta em uma estética literária muito particular. A autora vem sendo cada vez mais discutida – sua exposição na Caixa Cultural foi a primeira no país a ser inteiramente dedicada a ela, e sua obra foi o foco da edição de 2016 da FLIP. Todos os seus escritos foram compilados pela Companhia da Letras no livro Poética e ela ganha cada vez mais uma posição de destaque nas livrarias brasileiras. “À luz de spots”[iv], Ana vem cada vez mais sendo descoberta, mesmo que se mantenha sempre misteriosa.
-2016
Referências:
ALÓS, A. Texto literário, texto cultural, intertextualidade. Revista Virtual de Estudos da Linguagem–ReVEL. Vol. 4, n. 6, mar. 2016
Ana Cristina Cesar. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/YpNN0Y>. Acesso em 30 mai. 2017.
LEMINSKI, P. Ensaios e anseios crípticos. Curitiba: Pólo Editorial do Paraná, 1997.
MORICONI, I. Um passeio pelo baú de Ana Cristina Cesar, a poeta homenageada da Flip. Folha de São Paulo, São Paulo, jun. 2016. Disponível em <https://goo.gl/KsDRiT>. Acesso em 30 mai. 2017.
SIMÕES, L. Bruta Aventura em Versos. [Filme-vídeo]. Produção de Matizar Filmes, direção de Letícia Simões. 2011. 76min. color. son.
Notas
[i] Trecho da entrevista com Heloisa Buarque de Hollanda, do documentário Bruta Aventura em Versos (2011)
[ii] Trecho do poema “Soneto”, de Ana C.
[iii] Trecho da entrevista com Ricardo Chacal, do documentário Bruta Aventura em Versos (2011)
[iv] Trecho do poema “Samba-canção”, de Ana C.