A única outra vez que ele tinha ido à Guapimirim havia sido na ocasião de um outro enterro, do marido de Sandra. Ele não devia ter mais de sete anos na época, mas uma imagem daquele dia perdurara e rastejava agora insistentemente para dentro de sua cabeça – o caixão, o primeiro de sua vida, mirado de longe pelo para-brisa molhado, as gotas escorrendo devagar e distorcendo as silhuetas das poucas pessoas presentes no cemitério. Seus pais haviam ficado dentro do carro com ele, apenas observando, dois espectadores alheios ao horror daquele dia que afligia aquelas poucas pessoas curvadas na chuva. Era fácil distinguir Sandra dos outros naquele pequeno grupo, mais ainda por ser ela quem todos consolavam. Já então ele tinha a impressão de ter ouvido seus pais falando que o marido dela bebia muito, que batia nela e nos filhos e que acabaria matando a si mesmo. Mas talvez tivesse imaginado isso, ou se de fato tivesse ouvido, não prestara atenção. André ainda não tinha posse do sentido da barbaridade, nem nunca viria a ter como quem recebia, do outro lado, a fivela. Sabia, no entanto, que Sandra sofrera pelas mãos vivas do marido e sofria agora por seu corpo morto, e então seu pequeno coração solidarizava-se. “Isso é assunto de família, André”, sua mãe justificava a negativa quando ele pedia para sair do carro. Haviam dirigido da Barra da Tijuca até o pé da serra para levar Sandra até sua casa assim que ela teve a notícia de que seu marido havia sofrido um ataque do coração. O pai de André havia se oferecido para bancar o enterro e determinou que Sandra tirasse o resto da semana de folga. Na despedida, Sandra agradeceu por toda compaixão mais uma vez, beijou o filho de seus patrões na testa e voltou para sua família.
Desde então André nunca mais pensara nem ouvira falar no nome daquele homem. Até o dia em que voltou a Guapimirim, depois de todos os anos passados, para ver, desta vez de perto, ser sepultada ao lado da cova de seu falecido esposo, sua babá Sandra. Toda de branco como ele sempre a conhecera em sua casa, Sandra tinha uma expressão de eterna serenidade que André nunca antes havia visto em sua face. A mulher que trabalhara desde os treze anos de idade para sustentar, viúva, os sete filhos, havia finalmente entrado em um repouso impassível. A obra de sua vida, toda sua família, parentes e amigos, estavam presentes no velório. Seus 21 netos, suas comadres de décadas, todos os foliões da escola de samba que havia ajudado a fundar anos atrás, secretários da prefeitura da cidade para quem ela era como uma tia, dezenas mais que haviam cruzado caminhos com ela durante sua vida. Todos e André. O menino que ela havia criado para criar os seus. Seu filho branco. André faltou a aula na faculdade aquele dia e dirigiu ele mesmo até o local onde sua mãe de criação – como costumava chamá-la – seria enterrada. Veio sozinho dessa vez, sua mãe estava viajando e seu pai, ocupado. Este deu-lhe, no entanto, quinhentos reais para que o filho desse à família de Sandra, para ajudar com quaisquer despesas. Sandra, na verdade, já não trabalhava na casa da família há quase um ano, desde que havia ficado muito cansada para dar conta do serviço. Ela tinha a mesma idade que os patrões, mas o tempo sempre passara mais rápido para ela. Seu pai decidiu dispensá-la e desde então André não a via.
Sandra chegara à casa dos pais de André quando tinha 35 anos, ele ainda recém-nascido. Já havia passado duas décadas na casa dos outros, no trabalho doméstico. Cozinhava, limpava, lavava, passava e era babá. Não havia chegado à metade do ensino fundamental, mas era esperta, resoluta e aprendera a causar uma boa impressão. A mãe de André havia recebido uma recomendação de uma amiga para quem Sandra trabalhara – ela era honesta, trabalhadora, comportada e limpinha. Foi contratada depois de uma conversa no apartamento e na segunda seguinte foi trabalhar para um novo Seu e uma nova Dona. Os patrões eram bons para ela. Recebia um pouquinho mais que o piso salarial, além de ter plano de saúde e transporte pagos. Sandra fazia o trajeto da beira da região serrana até a zona oeste do Rio toda segunda. Saía de casa às 4 da manhã, sem acordar nenhum dos filhos, para pegar duas conduções e chegar a tempo de fazer o café. Alguma prima, tia ou amiga sempre olhava as crianças, mas naquela época suas meninas mais velhas há muito já trabalhavam, toda semana seguindo o mesmo destino da mãe. As do meio ajudavam a tomar conta dos irmãos, exercitando o futuro ofício. Sandra voltava a ver os filhos só na sexta-feira, quando chegava em casa quase à meia-noite, exausta e feliz. Nos dias de semana dormia no quartinho nos fundos da cozinha, ao lado da área, no serviço. Tinha uma cama boa, uma janela para o varal, uma televisão e um ar condicionado de parede. Os patrões eram bons para ela.
Sandra cozinhava e tomava conta de André. Logo que começou na casa se apaixonou pelo menino, com o cabelo virado em cachinhos e de olhinhos verdes. A patroa ficou em casa por alguns primeiros anos, parando de trabalhar, dando atenção ao primogênito sempre que Sandra não precisava. Dava-lhe de mamar, Sandra o fazia arrotar, dava-lhe banho, Sandra trocava-lhe as fraldas, e vice-versa. Ela assumia para Sandra fazer o almoço e arrumar as camas, e podia depois descansar da arduidade de ser mãe. Aprendeu os artifícios da incumbência com a babá, que já era experiente. Acabou acostumou-se à sua companhia, já que o marido voltava do trabalho só tarde da noite. Mal se preenchia a casa com a presença das duas mulheres e do menino, mas Sandra gostava da paz para trabalhar. A lavagem das roupas e a faxina eram uma outra moça que vinha todo dia que fazia, cargo que logo foi ocupado por uma das filhas de Sandra. O patrão aceitou seu pedido de trazer uma delas para o serviço quando a diarista pediu demissão e veio a mais velha ficar junto da mãe. A mãe de André ficou com receio das novas circunstâncias atrapalharem o funcionamento da casa, mãe e filha juntas tanto tempo talvez desse problema. Mas a garota puxava à mãe e tinha boa índole. Algum tempo depois, Sandra conseguiu também trazer um de seus filhos para cuidar do jardim. Seu patrão construiu um pequeno aposento nos fundos do quintal para os funcionários e a casa passou a ter duas famílias. Ele também emprestou dinheiro à Sandra para a construção de uma casa em Guapi, que ela pagou com um pequeno desconto de seu salário durante alguns anos depois. Não foi o único sonho que lhe realizaram. Ela conheceu também os Estados Unidos, quando André ainda era pequeno e a família viajou para a Disney, levando-a junto para ver o mundo, contanto que não tirasse os olhos do menino. O patrão era um homem taciturno, alto e sólido como um touro, porém generoso com ela. Sandra tinha enorme gratidão àquelas pessoas, passou a vida pedindo a eles a benção de Deus, e provavelmente morreu acreditando-se devedora.
Para o menino, Sandra era como uma mãe. Acostumado à babá desde que se entendia por gente, quando criança, André só conseguia dormir se Sandra deitasse ao pé de sua cama até que ele pegasse no sono. Sua mãe dava-lhe um beijo de boa noite, e Sandra ficava com o menino, contando-lhe suas velhas histórias no escuro, até que ele pegasse no sono. Aquela de que André mais gostava era a de Rosaflor e a Moura-Torta, que contava a história da mulher de pele escura e enrugada que diariamente tinha de buscar baldes e baldes de água para seus senhores, e que um belo dia fincava uma agulha na cabeça de uma linda moça que ria de sua feiura, transformando-a em uma pomba e tomando sua identidade em represália para casar-se com o príncipe prometido à bela. No fim, a moura era desmascarada, permitindo que a moça voltasse a ser linda como antes e vivesse para sempre junto de seu nobre marido. Apesar do final feliz, André sempre sentia pena da vilã, que sempre voltava a carregar baldes de água e ser maltratada por conta de sua feiura. Sua mãe não gostava que Sandra lhe contasse aquelas histórias sórdidas demais para uma criança, mas ele insistia todas as noites quando ela os deixava sozinhos e Sandra acatava. A babá vivia fazendo suas vontades. Assistia os mesmos desenhos animados incontáveis vezes, preparava-lhe todos os lanches prediletos, oferecia colo sempre que ele era castigado pelos pais. André cresceu encontrando tremendo conforto no ventre quente de sua babá, no grave som das melodias murmuradas que ela produzia com o fundo da garganta, no cheiro de preparo de comida que ele sentia em suas mãos e roupas. André gostava de passar os dedos pela sola do seu calcanhar, toda esbranquiçada e áspera com o gasto dos anos duros, suas graves linhas marrons nas palmas das mãos, seu grisalho cabelo tonhonhoim cortado curtinho. Gostava de ir com ela à feira para comprar frutas e verduras, vivia rodeando-a na cozinha sempre que ela estava preparando as refeições, gritava seu nome sempre que ralava um joelho pelo jardim. Sandra ia correndo, acudir seu menino, seu Dézinho. Dézinho de Sandra. Ela via o seu menino crescer e sempre lhe enchia de confiança. “Tá ficando homenzinho já, vai quebrar muito coração.” Ano a ano, ela ia ajudando a formar o seu caráter. “Onde já seu viu, moleque, bater nos coleguinhas?”, “Para de marra, André, pode comer tudo!”, “Deus que me perdoe, gente, olha o estado desse teu quarto! Você não tem vergonha na cara não, menino?”, “Larga mão de ser bagaceira, André!” Logo o menino cresceu barba, começou a se aventurar no amor, e passou para a faculdade. E Sandra sempre lá, vendo seu menino virar homem, sempre esperando-o voltar para casa. André levava-a a todos os ritos de passagem, às formaturas, cerimônias e aniversários. Sandra se arrumava toda, botava sua roupa de sair e ia orgulhosa. Ele dizia que daria os próprios filhos para ela tomar conta, em voto de confiança e carinho, e ela sorria e brincava que já estaria velha de mais, que estaria aposentada. Mal passava pela cabeça de André que ela poderia largar a família. Ele despercebidamente imaginava que ela moraria ali até seus últimos dias. Até que a viu partir por justa causa. Ficou furioso com os pais, que explicaram que não fazia mais sentido mantê-la, já que ela não conseguia mais fazer o trabalho. André achou de uma insensibilidade tamanha demitir a mulher que o havia criado, mas ele sabia que antes de tudo ela era uma empregada. Apenas para ele é que ela era uma protetora, um ninho amparador, um seio de afeto. Prometeu visitá-la, com o coração apertado, porém desde então nunca tivera tempo.
Sentado sozinho agora no banco da igrejinha de Guapimirim, agonizava em remorso. A maioria das pessoas já estava presentes quando ele chegou, de forma que foi direto sentar-se em um dos assentos do fundo. No espaço lotado de gente, André reconheceu os filhos de Sandra. Cumprimentou de longe os dois que ainda trabalhavam na casa de seus pais e acenou discretamente com a cabeça aos outros que mal conhecia. Todos retribuíram com um sinal sóbrio em reconhecimento de sua presença. Sete adultos formados, com suas próprias crias em volta, todos velando a mãe que dividiam com André. A cerimônia durou pouco mais de uma hora e foi seguida do enterro no cemitério, logo ao lado da capela. André sentia-se incoerente àquela cena, o ataúde sendo levado pelos filhos de Sandra até o seu jazigo sob a garoa fina que coincidentemente caía naquele final de tarde. Não conhecia ninguém ali, porém era provavelmente a pessoa com quem a falecida mais havia convivido. Ele não discursou, não viu o corpo de Sandra e não conseguiu chorar. Depositou apenas as flores que trazia consigo sobre o caixão antes de o cobrirem com terra. As pessoas começaram então a dispersar-se, e André sentiu um certo alívio pelo fato da ocasião fúnebre estar chegando ao fim. Nada ali o fazia recordar do espírito de sua babá, tudo era estranho ao seu conhecimento de Sandra. Nunca a ouvira falar sobre sua vida pessoal, contar histórias de seus amigos, detalhes sobre seus filhos. Nunca fora além do limite da existência de sua mãe de criação dentro do qual ele também se encontrava. Estar na presença de todas aquelas pessoas tão estranhas a ele, porém tão queridas à Sandra, o deixava extremamente inquieto por fazê-lo perceber que ele não a conhecia por completo, apenas a parte de sua pessoa que lhe dizia respeito. Novamente o remorso. Ele queria ir embora o quanto antes possível para não prolongar aquele sentimento, que agora, mais do que nunca, parecia irremediável. Iria até os filhos de Sandra despedir-se e volataria logo depois para o Rio, de onde, havia decidido agora, não devia ter saído. Uma cerimônia própria, privada e simbólica, em memória da alma luminosa de sua babá, teria sido o suficiente. Tarde demais. Pois diria adeus aos filhos de Sandra e, com eles, à memória dela. E pronto. Começou a dirigir-se à família quando, botando a mão no bolso das calças, sentiu o pequeno envelope com os quinhentos reais que o pai havia lhe dado para que entregasse ao filho mais velho da babá. Um calor constrangido lhe subiu subitamente pela espinha. Os filhos de Sandra já o haviam percebido indo na direção deles e já se preparavam para o que poderia ser uma incomoda, porém necessária formalidade. André não podia mais voltar, seria estranho demais. Não sabia o que seria pior, ter de entregar o dinheiro comiserado ao filho cuja mãe defunta ele havia reivindicado para si, ou dar meia volta e partir para nunca mais dizer nenhuma palavra a nenhum deles. Mas não poderia fazer isso, os dois que ainda trabalhavam em sua casa estavam também ali e isso causaria um desconforto ainda maior quando ele os encontrasse na segunda-feira – o pai de André os havia dado o resto da semana de folga, ele era bom para eles. Escolheu, pois, a única opção. A ajuda, de qualquer forma, haveria de ser bem vinda, a família ficaria grata pelo auxílio com os custos do dia. Eles sabiam que o pai de André era generoso, tinham agora uma casa de herança por conta dele. André finalmente chegou junto ao grupo, abraçou os filhos de Sandra que conhecia há anos, seguidos, um a um, dos que praticamente via ali pela primeira vez. André se sentia como se seu coração houvesse trocado de lugar com sua consciência, que agora quase explodia em vontade de reconciliar o que não poderia nem sequer ser expressado. Abraçou cada uma das outras quatro filhas de Sandra, simplesmente dizendo que sentia muito. Foi, talvez, o mais honesto que poderia ter sido. Quando parou diante de seu filho mais velho apertou-lhe firmemente a mão e repetiu seus pêsames. Marlon era um homem altíssimo e macérrimo, com a barba por fazer e os olhos em um fundo negrume úmido. Ele agradeceu a presença de André que, puxando-lhe de lado, estendeu as condolências de seus pais à família de Sandra. Nesse momento, já arrependido, André puxou o envelope do bolso e o entregou a Marlon, sem dizer uma palavra, apenas oferecendo os seus pesares monetários. Marlon mirou o envelope e voltou o olhar para os olhos de André. Os dois filhos de Sandra prenderam um ao outro em um olhar onde tudo parecia estar explícito. Um olhar onde toda sua culpa e aquiescência cegava-os. Um olhar de injustiça e necessidade. De omissão e submissão. Marlon buscou o envelope que André suspendia no ar e botou-lhe no bolso. “Obrigado”, disse no mesmo grave tom gutural em que sua mãe murmurava canções. André soltou a respiração, disse que voltaria em breve para visitar o túmulo de Sandra e partiu, caindo em um choro desesperado quando entrou em seu carro. Nunca teve tempo de voltar.
-2016