O homem-antídoto

“Meu pensamento me abandona em todos os níveis. Do simples fato do pensamento até o fato exterior de sua materialização nas palavras.”[i]

As palavras de Artaud ressoam dentro de nossas caixas torácicas como se nascessem de nossas próprias entranhas. O poeta desacreditado não poderia ter imaginado a atualidade de seus versos no mundo de hoje. Ou talvez sim, tão certo sempre esteve da necessidade de se criar um pensamento outro – para ele, um pensamento do corpo. Pois é no corpo de hoje que as suas palavras reagem, irrompendo em grandes escoriações, erupções anormais espalhadas pela pele, justamente o limite entre o corpo de fora e o corpo de dentro, entre o inorgânico e o orgânico. É essa capa sensível – às dores, aos choques, aos traumas –, é esse tecido que nos envolve e protege que hoje é consumido por uma grande inflamação, talvez a mesma que tenha levado Artaud ao esgarçamento voluntário da própria pele. Nesse estado de afogueamento, sentimos também que nosso próprio pensamento nos deserta, deixando-nos à mercê de um sistema esterilizante e triturador, que nos furta a fala de maneira ardilosa, calando-nos. Artaud foi exemplo vivo desse procedimento[ii]. Era subproduto do projeto de humanidade europeu, a escória, a sobra da criação do ideal do homem branco, ideal refletido à sua própria imagem, mas ao qual mesmo assim não se subjugou. A voz de Artaud – aguda, estridente, desconfortável – foi sistematicamente abafada, mas ela se fez escutar e ainda ecoa na contemporaneidade, pois denuncia, desde que foi entoada em suas cartas com Jacques Rivière, um jogo de forças que coloca todos nós em constante xeque. Artaud esteve sempre em risco, sempre sobre uma linha tênue entre a razão e a irracionalidade, no limite da “loucura”, único lugar onde podia viver as experiências necessárias para criar um pensamento para o corpo, uma nova linguagem da carne. Essa sua voz destoante, quando manifestada pelos ares de Dublin em 1937, por fim selou seu destino como “caso clínico” dentro do sistema médico-legal, deslocando-o à força para fora do entre-lugar sanidade/loucura e o sentenciando, oficialmente, à condição de indivíduo anômalo, pertencente ao asilo psiquiátrico, onde passou confinado grande parte de sua vida. A potência de Artaud era uma ameaça à matriz do pensamento ocidental: sua experimentação com o corpo não se subordinava à supremacia hierárquica da mente, sua procura por zonas de contágio com o povo Tarahumara infectava os processos de assepsia generalizada na modernidade, seu testemunho acerca da experiência da magia fugia à lógica do pensamento cartesiano. Artaud era o agente patógeno subversor da ordem estabelecida, o próprio diagnóstico de seu tempo, um sintoma que evidenciava o mal do século (o triunfo máximo e subsequente derrocada do projeto de homem branco europeu durante a primeira metade do séc. XX).

A radicalidade da obra de Artaud está na dedicação da sua vida ao seu trabalho e vice-versa: toda sua existência serviu ao propósito de se imaginar uma outra forma de pensamento. É à essa alternativa além do horizonte de expectativas no mundo contemporâneo que dedicamos nossa leitura de Artaud, cada dia mais importante. A atualização dos seus escritos está situada hoje por novos movimentos desorganizadores da “ordem”, insurgências que abordam questões – principalmente de identidade – há muito tempo silenciadas no Brasil. O silêncio daqueles na posição de subalternos, imposto como condição para sua coabitação com as formas de vida hegemônicas, começa a ser quebrado. Os dispositivos de controle por violência, perpetrados desde nossa colonização até hoje, são cada vez mais deflagrados. Saberes alternativos e outras formas de vida emergem com uma potência capaz de interrogar os saberes e formas tradicionais. Torna-se mais e mais evidente a lógica do capitalismo cruel de viés neocolonial instaurado neste país à qual ainda tantos são submetidos pelo benefício daqueles no poder. Essa movimentação do corpo político é inédita no Brasil[iii]. Nossa fundação cultural apoia-se principalmente no mito antropofágico, ou seja, na digestão de elementos culturais estrangeiros (em sua grande maioria, europeus) para a formação de uma identidade própria. Essa tradição é fruto de um processo de colonização muito bem-sucedido, cujas evidências permaneceram ocultas por longo tempo entre nós sem que nos ocupássemos em saber do que era feita a argamassa dos pilares do estado de natureza social brasileiro. No contemporâneo, esse carácter neocolonial das formas sociais que ditam nossas vidas começa a ser revelado, mas nossa herança canibal persiste em forjar um senso de unidade cultural por meio da assimilação de outras culturas, resultado de uma relação de proximidade muito grande com o agressor. O Brasil nunca parou para se pensar. Em um cenário global de desesperança e polarização, onde poucos povos podem apoiar-se em uma ideia firme de comunidade, ficamos à mercê da nossa ignorância. O fim da narrativa na modernidade[iv] – a incomunicabilidade da experiência e subsequente impossibilidade de construção de uma tradição comum – nos rende completamente sós, cada um por si em um mundo constantemente irreconhecível e inexplicável (BENJAMIN, 1985b). Essa falta de uma ligação com o passado, ainda mais perversa no Brasil, impossibilita qualquer sentimento de pertencimento, tornando-nos dependentes apenas de nós mesmos em um mundo cada vez mais individualista e, portanto, competitivo – ideais que cumprem muito eficientemente a agenda do capital. Os novos movimentos de natureza fascista no país surgem justamente como resposta a esse estado de desamparo generalizado, uma solução que supre, artificialmente, essa deficiência, atraindo indivíduos solitários com um discurso de forte cunho comunitário e identitário.

Essa sucumbência a alternativas violentas já estava prevista. Havíamos sido alertados sobre o perigo da ausência de uma “válvula de escape”, da importância clínica da experimentação controlada de um estado de desregramento, uma pequena violência constitutiva[v] em prevenção a uma violência maior (MAFFESOLI, 2004). Essa não seria apenas uma prática purgatória – pois neste sentido estaríamos somente perpetrando a eliminação higienista das “impurezas” –, mas sim um exercício de contato com as faces mais subversivas da vida, uma exploração dionisíaca pelos espaços “grotescos” da nossa existência. Tal acesso habitual aos conteúdos mais “indecentes” da experiência humana como ato libertador não é algo novo: estava presente no nonsense da narração da viagem de Alice pelo “submundo” de Lewis Carroll, nas peripécias escatológicas de Gargântua e Pantagruel nos escritos do renascentista Rabelais, nas terríveis histórias sobre esquartejamentos, canibalismos e estupros nos macabros contos de fada tão abundantes na matriz do pensamento medieval. São essas manifestações literárias que nos possibilitam uma maior comunicação com os componentes primitivos da nossa psique, aqueles já tão processados pela máquina que censura e controla os seus conteúdos mais “assustadores”, que subtrai a indelével imagem da avó e sua neta sendo devoradas por um lobo sagaz ao resgate do lenhador, ou ainda que diminui a dolorosa rivalidade fraternal de Borralheira à uma insípida história sobre um desencontro amoroso. As versões originais de Perrault e dos Irmãos Grimm intentam, na realidade, um ensinamento, uma contribuição à edificação da moral, uma forma de terapêutica espiritual que é passada oralmente de geração para geração. Tão essencial, portanto, a exposição à essas narrativas durante o período da infância, único momento na trajetória da vida em que há uma aceitação quase instintiva da duplicidade, da inversão, da metamorfose, da fantasia. É essa receptividade do “outro” como solo fértil para a formação humana que é tragicamente desperdiçada quando colocamos as crianças em um lugar de desprestígio no contexto social, privando-as dos elementos negativos da vida – a dor, a perda, o fracasso – e condenando-as (e a nós mesmos como espécie) à inevitável decepção.

Todos carregamos, entretanto, um resquício dessa capacidade inata, o vestígio de nossas vozes infantis, ingênuas, puras, livres, que merecem e precisam ser entoadas na contemporaneidade. A importância de Artaud para o presente é sua capacidade de evocar essas vozes deflagradoras, mesmo que sua propagação seja cada vez mais penosa. Ainda não há, efetivamente, uma mudança epistemológica em nossa construção social, mas o momento de esgotamento geral demanda o grito. O clamor que começa a se espalhar pelos ares é a súplica que há muito vem guardada dentro do peito ofegante. É o berro que transgride à extirpação generalizada dos elementos “menores” e, portanto, não condizentes com a estrutura dominante. É difícil se encontrar espaço para o grotesco, o estranho, o inferior ou o mágico na lógica binária do capital que comanda o mundo da maneira mais rentável possível. Mas a resiliência do poeta francês serve de inspiração para que sigamos tentando – nos colocando em zonas de disponibilidade a acontecimentos que nos reaproximem de um estado mais primordial da existência, que possibilitem atravessamentos que perfurem nossos corpos docilizados, que nos remetam às origens selvagens de nossas vidas domesticadas. Talvez tomando o exemplo de Artaud como essa possível “homeopatia do mal”[vi], como esse grande produtor de anticorpos, encontremos formas de estabelecer novas relações com as estruturas de poder vigente. No fim, é o bramido catártico de Antonin que retumba sobre todos os outros, renovando-nos as esperanças em meio ao desconhecido:

“O que é grave
É sabermos
que atrás da ordem deste mundo
existe uma outra
Que outra?
Não o sabemos.
O número e a ordem de suposições possíveis neste campo
é precisamente
o infinito!”[vii]

-2016

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Trad.: Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. 188p.

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ______. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. Trad.: Sergio Paulo Rouanet. 3a ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985a. p. 114-119.

______. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. Trad.: Sergio Paulo Rouanet. 3a ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985b. p. 197-221.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad.: Arlene Caetano. 16a ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad.: Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997. 176p.

KIFFER, Ana. Antonin Artaud. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2016. 266p.

MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo. Trad.: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. 162p.

Notas

[i] ARTAUD, Antonin. Oeuvres complètes I. Paris: Gillimard, 1994. [pp. 24-5]
[ii] Tomo como ponto de referência para minha discussão de Artaud os ensinamentos da professora Ana Kiffer em seu curso Os limites do literário, ministrado na PUC/RJ em 2017.1.
[iii] Faço aqui referência à aula do professor Alexandre Mountaury acerca do corpo político no Brasil, ministrada em 25/05/17 como parte dos seminários do curso Os limites do literário, ministrado pela professora Ana Kiffer na PUC/RJ em 2017.1.
[iv] Baseio-me, para a discussão sobre o fim da narrativa e do senso de comunidade na modernidade, nas aulas do curso Estratégias de leitura, ministrado pela professora Mariana Patrício na PUC/RJ em 2017.1.
[v] Adoto, como ponto de partida para a discussão acerca da importância de tais “estados de desregramentos”, o curso A atualidade dos clássicos, da professora Flávia Vieira, ministrado na PUC/RJ em 2017.1.
[vi] Conceito utilizado pela professora Flavia Vieira durante o curso A atualidade dos clássicos, ministrado em 2017.1 na PUC/RJ.
[vii] Texto-poesias retirados de uma transmissão radiofônica intitulada “Para acabar com o julgamento de deus”, realizada por Artaud (como autor e narrador) e por alguns de seus amigos (Roger Blin, Marie Casarès e Paule Thévenin), que além de narrarem o ajudaram na produção dos efeitos sonoros durante a transmissão.

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