Ela abre a porta e veste branco, uma cor que nunca a vi usando. Antes de mais nada, ela solta um longo suspiro de puro deleite.
“Oi.”
Sua voz parece um pouco mais grave que o normal. Talvez aqui, em sua própria casa, ela assuma seu verdadeiro tom aveludado. Talvez ela esteja apenas tentando parecer sensual.
“Tudo bem?”
“Sim, vem, entra.”
Largo a garrafa de vinho sobre a mesa de jantar logo ao lado da entrada e olho ao redor, olho todos os detalhes do apartamento, tentando decifrá-la.
“Linda a sua casa.”
Os livros, a maioria da editora em que ela trabalha, ocupam todas as suas estantes, estão apoiados sobre algumas das cadeiras, empilham-se em cantos do chão, parecem destroços, ela vivendo soterrada. Não sei se tomo aquilo como sinal de seu sedento intelecto ou como sintoma de um transtorno de acumulação.
“Senta aqui, vou buscar um hummus que fiz agora há pouco.”
O chão é de madeira escura, envelhecida, o ambiente pouco iluminado, os móveis esparsos, de bom gosto. Ela tem alguns posters pelas paredes, um filme iraniano para lembrar suas origens persas, um mapa antigo de Berlim, a foto de uma pintura de Chaim Soutine, daquelas que se compram em lojas de museus, nenhum quadro de verdade.
“Você gosta de azeite?”
“Gosto.”
Rasgo um naco do pão sírio e mergulho-o na pasta afogada em azeite de oliva. Ela me observa enquanto mastigo, observa os movimentos firmes da minha mandíbula que flexiono lentamente, sinto-me observado e acho que gosto.
“Vamos abrir seu vinho.”
Eu a acompanho com o olhar e noto o corredor escurecido que leva ao quarto, onde a noite que agora dividimos certamente acabará. Eu já notara suas mãos antes, seus movimentos delicados, comedidos, a forma como gesticulava, significando com os movimentos cada uma das palavras que saía de sua boca. A maneira como ela saca a rolha da garrafa é uma obra prima.
“Saúde.”
Tomo um gole da taça um pouco cheia demais e entendo que ela me serviu cheia de intenções. Falamos dos acontecimentos da semana, que nos levam ao um papo sobre política, de onde seguimos para os desejos que ainda nos afligem, revisitando nossos gostos em comum. Escuto ela declarar suas paixões por alguns cineastas, assumir suas invejas de alguns autores, tudo enquanto sorve, mais rapidamente que eu, o vinho barato que comprei.
“Sinto cada dia mais que a grande realização da vida adulta é que nunca nossos sonhos serão realizados, que a verdadeira maturidade é uma constante retração das nossas expectativas, até que finalmente elas encontrem o limite da realidade, onde talvez poderemos encontrar o contentamento.”
Concordo com ela, mas não falo nada. Fico quieto e escuto ela falar de todas as suas angústias numa onda de honestidade que chega com os últimos goles da segunda taça. Enquanto ela despe sua mente continuo reparando nos pequenos sinais de sua rotina: a maneira como ela coloca as folhas mortas sobre a terra nos vasos das plantas, o tubinho de vitamina c caído sobre a estante, uma pequena mancha preta na almofada que ela segura sobre o colo. Ela arrumou tudo antes da visita, mas para além do cortejo, da voz aveludada, do hummus e da forma como ela discursa calculadamente, sei que estou o mais próximo que já estive de conhecê-la, por completo. Quando a beijo, sinto que ela se entrega aqui também, de corpo, confiando totalmente em mim. Sinto nos seus lábios trêmulos, que agora exalam um leve aroma de uva, uma ligeira hesitação, aquele breve impulso de arrependimento que seguem todas as nossas escolhas, as certas e as erradas. Então tomo ela pelas mãos graciosas e a conduzo atrás de mim pelo corredor escuro até o quarto, como se todos os cômodos da casa fossem agora meus também.
-2018