Rio, 8 de janeiro de 2018
Hoje encontrei o caderno. Encontrei o caderno no fundo do armário, por acaso, enquanto você assistia televisão deitada na cama depois de jantar. Nas tuas letras geométricas marcadas pelo ofício de arquiteta li a primeira anotação nesse diário, o diário do meu primeiro ano de vida: “Nasci às 21:15h com 3,650kg e 50cm de comprimento”. Leio essa e outras entradas cotidianas nas páginas amareladas pelo tempo. O registro da primeira vez que sorri, de um dente que despontou antes da hora, do doutor que disse que faço parte do grupo de 10% dos bebês mais altos do país. As palavras são tuas, mas quem fala sou eu. Encontrei o caderno guardado no fundo do armário e nele essa correspondência secreta em que mãe e filho dão voz um ao outro, em que você evoca minha primeira subjetividade, e eu lhe outorgo a experiência materna e uma nova identidade. Leio minhas próprias memórias e acho que consigo te escutar, como se você falasse de mim, para mim, a partir de mim, como se ainda habitássemos um mesmo corpo. Leio e acho que escuto a tua voz, uma voz de que já não me lembro mais. Daqui decidi escrever esta carta que agora te envio para te restituir da fala que você perdeu. Escrevo e te envio essas páginas porque quem está aqui comigo não é mais minha mãe e porque daqui não enxergo mais as interseções entre o teu corpo e a tua mente. O corpo hoje é um corpo assistido, passivo, pedindo socorro, é um corpo alimentado, asseado, exercitado à força. Tua mente ficou na memória dos outros e hoje só se manifesta em resquícios, como nas poucas vezes em que você sorri e me pergunto se é a última vez. Ou ainda quando você, andando pela casa à tarde, para ao lado da porta do meu antigo quarto e arrisca a cabeça para dentro, em busca de qualquer lembrança. Em algum canto recôndito da memória você sabe o que se passou aqui, você intui que dentro desse pequeno espaço assistiu sua cria crescer. Mas com a mesma casualidade com que procura, curiosa, algo que lhe pertença, abandona logo essa busca inútil e segue seu vago caminho. Escrevo e envio essa carta para o momento de meu nascimento, em 1993, buscando o resgate de uma personalidade esvaída. Quem é você? Ou talvez já, quem foi você? Você ainda é? O que te define então é a tua sanidade, as tuas faculdades mentais, o teu ofício de arquiteta, teu papel de mãe? Ou só você aqui, sentada, olhando para o nada, para tudo, como uma criança que, como eu, acaba de nascer? Te escrevo no momento de meu nascimento para dizer que encontrei o caderno no fundo do armário e que ainda me lembro de você. Que você sobrevive, mesmo que não saiba disso. Em outra linha no antigo diário, encontro: “Estou danado, parece que comecei a descobrir o mundo de uns dias para cá. Entendo tudo o que falam comigo, se não sei alguma coisa é só me mostrar que não esqueço mais. Falo muito, uma língua que só eu entendo.” Pergunto-me se você realmente não compreendia essa minha língua. Se ali, enquanto você registrava diariamente minha descoberta do mundo, já não ouvia, na tua própria voz, a minha. Se hoje não está, nesse mesmo idioma em comum, nossa única possibilidade de um diálogo. Escrevo e envio essa carta para você para tentar encontrar, em minha própria voz, a tua.
“Prefiro rir”
vídeo-instalação
– 2018
Texto e imagens da exposição Formação e Deformação na EAV Parque Lage (2018)
(exposição final dos alunos do Programa de Formação e Deformação)
catálogo da exposição