Triste não é ao certo a palavra

O caderno no fundo da caixa por pouco não se desfaz ao meu toque. Removo-o com cuidado e noto que a capa de couro antigo já descasca em vários pontos. As páginas têm aquele aspecto familiar de papel envelhecido, com uma tonalidade mais amarelada e pequenas manchas marrons. Reconheço imediatamente a tua caligrafia. Letras de forma em um estilo geométrico próprio da tua profissão de arquiteta. Leio a primeira anotação: Nasci às 21:15h com 3,650kg e 50cm de comprimento. É um diário, um diário do meu primeiro ano de vida. Percorro essa e outras entradas nas páginas empalidecidas pelo tempo. O registro da primeira vez que sorri, de um dente que despontou antes da hora, do doutor que disse que faço parte do grupo de 10% dos bebês mais altos do país. As palavras são tuas, mas quem fala sou eu. Sou eu quem descreve todos os primeiros acontecimentos, quem relata todos os detalhes da história como um narrador-personagem. Sou eu o protagonista, mas é você quem escreve. Nessa correspondência secreta em que mãe e filho dão voz um ao outro, você evoca minha primeira subjetividade e, nesse processo, eu lhe outorgo sua nova identidade materna. Leio minhas próprias memórias e acho que consigo te escutar, como se você falasse de mim, para mim, a partir de mim, como se ainda habitássemos um mesmo corpo. Leio e acho que posso escutar tua voz (levemente anasalada, o ritmo calmo e o timbre doce, o sotaque que para mim nunca foi discernível, a primeira coisa que os outros notavam). Leio e decido repetir a história. Escrevo para te restituir da fala que você perdeu. Escrevo porque acredito que quem está aqui não é mais minha mãe e porque daqui não enxergo mais as interseções entre o teu corpo e a tua mente. O corpo hoje é um corpo assistido, passivo, é um corpo alimentado, asseado e exercitado à força. Escrevo porque tua mente ficou na memória dos outros e hoje só se manifesta em resquícios, como nas poucas vezes em que você sorri e me pergunto se é a última vez. Ou como, quando ainda andava pela casa à tarde, parava ao lado da porta do meu antigo quarto e arriscava a cabeça para dentro, em busca de qualquer lembrança. Em algum canto recôndito da memória, você sabia o que havia se passado ali, você intuía que dentro daquele pequeno espaço assistira sua cria crescer. Mas com a mesma casualidade com que procurava, curiosa, algo que lhe pertencia, logo abandonava essa busca inútil e seguia seu vago caminho. Escrevo e te envio essa carta buscando o resgate de uma personalidade esvaída. Quem é você? Ou talvez já, quem foi você? O que te define então é a tua sanidade, as tuas faculdades mentais, tua profissão, teu papel de mãe? Ou só você aqui, sentada, olhando para o nada, para tudo, como uma criança que, assim como eu, acaba de nascer? Escrevo para dizer que encontrei o caderno dentro da caixa no topo da estante e que ainda me lembro de você. Que você sobrevive, mesmo que não saiba disso.

Em outra linha no antigo diário, encontro: Estou danado, parece que comecei a descobrir o mundo de uns dias para cá. Entendo tudo o que falam comigo, se não sei alguma coisa é só me mostrar que não esqueço mais. Falo muito, uma língua que só eu entendo. Pergunto-me se você realmente não compreendia essa minha língua. Se ali, enquanto registrava diariamente minha descoberta do mundo, você já não ouvia, na tua própria voz, a minha. Se hoje não está, nesse mesmo idioma em comum, nossa única possibilidade de um diálogo. Escrevo e envio essa carta para você para tentar reencontrar, em minha própria voz, a tua.

LÍNGUA


LÍNGUA é uma microssérie de Carolina Muait, Gabriel Abreu e Patrick Sampaio, com realização do BRECHA e produção associada da Cajamanga e da Interseção.

A série narra fragmentos da vida de 9 jovens adultos da cidade do Rio de Janeiro nascidos nas décadas de 1980 e 1990, personagens diversos em orientações sexuais, gêneros e origens, mas com frustrações comuns ao lidar com questões como amor, sexualidade, família, trabalho e preconceito. Um retrato ficcional da chamada “geração do esgotamento”.

Uma antologia, LÍNGUA tem cada episódio dedicado ao desenvolvimento de um ou mais personagens distintos, pessoas que aos poucos revelam-se interligadas, partes de uma mesma bolha social que, mesmo um tanto diversa, os une na sensação de incomunicabilidade e dificuldade de mudar suas vidas, padrões comportamentais e obstáculos político-estruturais.

Após gravações interrompidas devido à pandemia e diante de um cenário incerto, o BRECHA decidiu unir esforços com a Cajamanda e a Interseção para finalizar o material gravado até então e compartilhar com o público os episódios feitos antes do isolamento social.

Prefiro rir

Rio, 8 de janeiro de 2018

Hoje encontrei o caderno. Encontrei o caderno no fundo do armário, por acaso, enquanto você assistia televisão deitada na cama depois de jantar. Nas tuas letras geométricas marcadas pelo ofício de arquiteta li a primeira anotação nesse diário, o diário do meu primeiro ano de vida: “Nasci às 21:15h com 3,650kg e 50cm de comprimento”. Leio essa e outras entradas cotidianas nas páginas amareladas pelo tempo. O registro da primeira vez que sorri, de um dente que despontou antes da hora, do doutor que disse que faço parte do grupo de 10% dos bebês mais altos do país. As palavras são tuas, mas quem fala sou eu. Encontrei o caderno guardado no fundo do armário e nele essa correspondência secreta em que mãe e filho dão voz um ao outro, em que você evoca minha primeira subjetividade, e eu lhe outorgo a experiência materna e uma nova identidade. Leio minhas próprias memórias e acho que consigo te escutar, como se você falasse de mim, para mim, a partir de mim, como se ainda habitássemos um mesmo corpo. Leio e acho que escuto a tua voz, uma voz de que já não me lembro mais. Daqui decidi escrever esta carta que agora te envio para te restituir da fala que você perdeu. Escrevo e te envio essas páginas porque quem está aqui comigo não é mais minha mãe e porque daqui não enxergo mais as interseções entre o teu corpo e a tua mente. O corpo hoje é um corpo assistido, passivo, pedindo socorro, é um corpo alimentado, asseado, exercitado à força. Tua mente ficou na memória dos outros e hoje só se manifesta em resquícios, como nas poucas vezes em que você sorri e me pergunto se é a última vez. Ou ainda quando você, andando pela casa à tarde, para ao lado da porta do meu antigo quarto e arrisca a cabeça para dentro, em busca de qualquer lembrança. Em algum canto recôndito da memória você sabe o que se passou aqui, você intui que dentro desse pequeno espaço assistiu sua cria crescer. Mas com a mesma casualidade com que procura, curiosa, algo que lhe pertença, abandona logo essa busca inútil e segue seu vago caminho. Escrevo e envio essa carta para o momento de meu nascimento, em 1993, buscando o resgate de uma personalidade esvaída. Quem é você? Ou talvez já, quem foi você? Você ainda é? O que te define então é a tua sanidade, as tuas faculdades mentais, o teu ofício de arquiteta, teu papel de mãe? Ou só você aqui, sentada, olhando para o nada, para tudo, como uma criança que, como eu, acaba de nascer? Te escrevo no momento de meu nascimento para dizer que encontrei o caderno no fundo do armário e que ainda me lembro de você. Que você sobrevive, mesmo que não saiba disso. Em outra linha no antigo diário, encontro: “Estou danado, parece que comecei a descobrir o mundo de uns dias para cá. Entendo tudo o que falam comigo, se não sei alguma coisa é só me mostrar que não esqueço mais. Falo muito, uma língua que só eu entendo.” Pergunto-me se você realmente não compreendia essa minha língua. Se ali, enquanto você registrava diariamente minha descoberta do mundo, já não ouvia, na tua própria voz, a minha. Se hoje não está, nesse mesmo idioma em comum, nossa única possibilidade de um diálogo. Escrevo e envio essa carta para você para tentar encontrar, em minha própria voz, a tua.

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“Prefiro rir”
vídeo-instalação
– 2018

Texto e imagens da exposição Formação e Deformação na EAV Parque Lage (2018)
(exposição final dos alunos do Programa de Formação e Deformação)
catálogo da exposição

Pinheiros (trecho 4)

A chuva forte caindo, incessante, paralisando as ruas, a cidade, o mundo inteiro. A água transborda de um céu incolor sobre a marquise das lojas, sobre todas as sujas esquinas, sobre os semáforos agora faróis. Os bueiros e os guarda-chuvas e os para-brisas não dão conta da tarde alagada, as pessoas se afugentam em saltos apressados, curvadas debaixo de suas bolsas, com medo, medo do fenômeno que apesar de recorrente em suas vidas ainda espanta, pois afinal é fenômeno, manifestação natural que pega em flagrante animais artificiais que se locomovem em máquinas, que andam vestidos, que pavimentam a terra, que aterram os mares, que sistematizam a fluência dos rios, que reorientam os raios, mas que são incapazes de impedir a chuva – a chuva há de cair e cai molhando tudo que foi feito seco, deixando todos perplexos, fazendo com que se retirem e aguardem enquanto o temporal banha o asfalto quente e os telhados áridos e toda gente sóbria, como um chuveiro ligado sobre a ceia posta sobre uma mesa de jantar ou um balde entornado sobre uma criança já debaixo de suas cobertas, pronta para dormir.

Escorrendo pelo para-brisa, as gotas borradas pelo vermelho do freio adiante alertam que pare, que o trafego, que o trânsito, o trânsito, o rádio ligado, que o trânsito, o trânsito, que a voz do Brasil, que o trânsito, desligo, que o trânsito, silêncio, o trânsito, que o trânsito, transito pelos meus pensamentos e o trânsito, a marcha automática e só os dois pedais, e o trânsito, e o tédio, o assento de couro com as abas laterais que aconchegam os rins e aparam o torso, o volante agarrado por baixo enquanto os antebraços repousam sobre as coxas, o volante de couro, o painel de couro, o interior das portas de couro, é tudo de couro, um couro preto, couro falso, que cheira à química, que cheira a produto de limpeza, os tapetes de papel amarelo sobre o chão para evitar a sujeira, o tubinho de álcool gel com cheiro de rosas depositado no porta-copos, um carro asseado, puro, antisséptico, e eu um corpo estranho, protegido sobre o teto do veículo, esse veículo que não me pertence, que me foi emprestado, e que por isso me põe em dívida, que me vexa e humilha, uma posse alheia, um ativo valioso na declaração do imposto de renda, uma propriedade privada, uma herança, um direito aos bens, um patrimônio a um ente querido, todo um legado sobre quatro rodas, esse sim, meu legado, predestinado, reservado e fadado a mim, não obstante a desigualdade social, a má distribuição de renda, o salário mais mínimo, os direitos humanos, nem o trânsito, esse carro é meu. Não o quero, mas é meu. Incondicionalmente pertence a mim, está atestado no sobrenome que carrego, aquele que divido com outros tantos homens que vieram antes de mim, cujas vidas se realizaram na direção da minha, o sobrenome que convoca e ordena, que se sobrepõe a todos os outros nomes, que designa um propósito a cumprir, que demanda uma posição, que exige um comportamento. O nome da família. O nome que me afiança esse mesmo carro, que denomina a rota a se tomar, que indica o momento de diminuir a velocidade, que estabelece o instante de ligar a seta e entrar à direita. Abaixo o vidro para provar a alcunha e logo abrem a cancela, o portal de ferro, dão-me um boa noite numa incontinência irrisória, sigo escuridão a dentro, os paralelepípedos irregulares chacoalhando-me a cabeça, por que não asfaltam essa merda de uma vez?, e estaciono logo em frente à casa.

“Pinheiros” (trecho 4)
gravação de leitura
– 2018

narremas

she actively sought the feeling of déjà vu

I’ve lost count of my unfinished businesses

emotional resources were scarce

she then revealed her favorite quality in women was their masculinity

her eyes were determined as the origin of the fire


da janela ele via a vida passando-o pra trás

“narremas”
ensaio visual
– 2018