s.t.

Sabes que te observo enquanto você me olha dormir? Consigo ver o teu rosto concentrado através das frestas das minhas pestanas cerradas enquanto abro levemente os lábios e forço espasmos sonolentos no rosto. Você gasta um longo tempo com a cabeça apoiada sobre o travesseiro, bloqueando a luz fraca do abajur, e eu quase consigo ver minha própria imagem nos teus olhos negros. Pergunto-me se você sabe que estou fingindo, se mantemos esse hábito só pra poder partilhar de um mesmo segredo sem nunca precisar revelá-lo.

-2018

s.t.

                                        você
e eu
e ele

as tuas mãos finas
as pernas
grossas

os cabelos               tácitos

os teus beijos meus neles

um grande tran
çado uma     cruza

uma epopeia         na cama
de um de nós

em um nó de nós      três

-2018

s.t.

ele se sente todo rouge
quando pega o batom vermelho
com os dedos rudes e arrasta pelos
lábios ásperos a pasta sólida e untuosa que o
transforma e esquenta em
cor do mesmo fogo que sente enquanto
desliza com força sobre os beiços másculos
o bastão rubro que destroça
contra a boca suja e os dentes brancos e a língua tosca
mastigando no espelho a própria imagem errada

-2018

s.t.

Ela é rainha da rua quando desce até o ponto de ônibus. Balança os cabelos que vão secando do banho ao longo do caminho, enquanto os ombros frescos queimam com o sol da manhã. Os joelhos fortes brincam com a barra do vestido e o couro das sapatilhas é o mesmo da bolsa que carrega pendurada até a cintura. Ela plana ladeira abaixo. Quando passa à obra na esquina, cruza o caminho de um peão sem nome pra quem o sol já nascera há muito tempo. Tem a pele suada, negra como o piche que trabalha com a enxada em punhos, punhos firmes e sólidos de artesão. Sua concentração é toda investida no trabalho, mas não há chance alguma de mantê-la contra a brisa que sopra anunciando essa mulher. Sem hesitar, ele larga o ofício e sorri com os olhos, o tórax, todo o corpo potente, e arma com a boca larga o sorriso mais maravilhoso que já vimos em nossos vidas. Logo joga as mãos aos céus e se declara: “Te enchia de brilhante!”

Ela para!

O cortejo inesperado, o homem que é um touro, o calor do quase meio-dia, a brisa que passa por seus joelhos, a barra do vestido, o corpo suado, a boca dele cheia de brilhantes, a boca que ela nem se percebe beijando apaixonadamente em plena ladeira abaixo, aos olhos de todos os pedreiros e passantes, aos olhos sorridentes do homem que agora lhe toma em seus braços virulentos e a beija como um príncipe. Não trocam uma palavra pois tudo já foi dito. Ela segue seu caminho inabalável e ele toma de novo em suas mãos calosas a enxada, com o coração cheio daquela força que nasce de caminhos que se cruzam.

-2018

sombra

deslizo-me aos teus pés
inquieta
silenciosa
sou ausência e
ainda assim
tua própria imagem
tua silhueta, teus movimentos
teu corpo opaco
grosso, delgado
sou apenas o resultado
de uma intercepção
um espírito desencarnado
se um traço bem definido
ou um vulto manchado
estou sempre, haja luz,
contigo

-2018

s.t.

I look at him while he’s still asleep, the faint sunlight starting to shine through our window, the window of his apartment, while he lies his face against his thin pillow, his long eyelashes trembling full of dreams, his naked body spent over the sheets, I look at him in total control, at last, and realize what I must and do not want to do.

-2018

foreclosure

As sacolas do mercado pesam sobre as mãos delicadas – talvez tenha subestimado a distância do percurso, talvez devesse ter vindo de carro, pegado um taxi. Mas está sol, uma manhã de sábado afinal, a posta de salmão, os figos frescos e as nozes pecan, o almoço com a família que aos poucos acorda em casa. Ela toma o caminho de sempre, o caminho tranquilo, fresco, cheio de sombra, coberto pela copa das árvores repleta de frestas de luz que malham as calçadas, como o pelo de uma onça, ou o chão de uma discoteca. Ela caminha distraída pela própria sorte, desviando os sapatos das falhas na geometria das pedras portuguesas. Logo mais a frente percebe um amontoado contra a mureta de um prédio, cobertas velhas e papelões descartados, uma sacola de plástico repleta de trapos. Ela sente os músculos dos ombros contraírem-se – involuntariamente – e as compras pesam ainda mais, a pele fina das palmas suadas ficando cada vez mais vermelhas. Acerta sua trajetória em alguns centímetros à esquerda como tantas outras vezes, especialmente nessa época mais fria do ano em que encontros como esse tornam-se mais frequente. Mais à frente, sua casa está do outro lado da rua, mas ela, correta, evita atravessar a pista. A família espera e ela tenta passar reto ao lado do volume disforme abandonado à calçada, mas é então tomada de um súbito horror quando debaixo dos panos secos sai um pé. Seu olhar é preso: a pele negra ressecada em volta dos tornozelos, as unhas escurecidas, a couraça branca da sola toda rachada como as pedras portuguesas. Ela vê o pé, impossível não ver o pé, vê o corpo murcho sobre as cobertas sujas, a carne encardida do pé, o membro fétido, uma força indigente tomando a calçada tranquila, fresca, cheia de sombra, um grande pé negro no meio do caminho. Enfim desvia o olhar, passa reto e corre à casa, à família, ao almoço do final de semana, decidida de que a partir de agora sempre atravessará a rua quando necessário.

-2018

carta de b.

amigo,
que importância?
às vezes acredito que muita
às vezes que nada
As coisas, agora, me ouve:
tenho os olhos abertos
e tudo gira tão depressa
sei
tenho os olhos fechados.

é difícil estar no mundo
(sera que sempre?)
grande demais
rotinas muitas
aqui posso ser toda
em partículas, amigo
capaz de algo mais
do que o agora

é um espelho enferrujado
a tua existência.

verdade que envelhecemos?
será justo
assim
ainda
um espirito qualquer que fale conosco?
minhas pernas andam
cansadas
tola barriga que sempre caiu sobre a cabeça fraca
tenho medo de acordar
de chegar a hora para sempre
olho pro sol apressado
vejo absurdo
vejo beleza
uma garrafa do lado da minha cama
e nas primeiras linhas chorei
de tristeza, melancolia e saudade.
Mas dividiria contigo
um abraço
forte,
apertado,
demorado.
escreve.

-2018

s.t.

Seus olhos são amarelos, esferas inteiramente amarelas com minúsculas veias vermelhas correndo por toda sua superfície, seu sangue frio, seu couro quente e escurecido, todo preto, escamas eriçadas descendo-lhe a espinha, suas patas gordas sobre o meu corpo, todo seu peso monstruoso sobre meu corpo, suas garras profanas, sua carapaça oleosa roçando contra minha pele, seu hálito arfante de enxofre velho me tonteando, longas lágrimas de fumaça verde subindo de suas narinas acesas como dois incensos, suas asas erguidas acima do corpo a perder de vista, seu tronco réptil me prendendo contra o chão, me arrastando à força, sem minha adaga, contra tal serpente fabulosa, sou presa.

-2018

s.t.

ele me liga
é tarde mas atendo
às vezes não, ignoro
mas atendo
vamo tomar uma cerveja?
desde que tomamos a primeira juntos
ainda moleques
as primeiras, juntos
os primeiros, juntos
vamo
ali mesmo
na sarjeta aqui de casa
tanto faz
e como vai o trabalho?
e a família?
o namoro?
e as risadas, juntos
o humor antigo
compartilhado
e de repente nos abrimos
logo somos dois homens adultos
chorando juntos
dois moleques
sem saber o que dizer
um pro outro
além de ficar num silêncio
cúmplice
soluçando na sarjeta
escondida
até que tudo fique bem
até sermos adultos
novamente

-2018