LÍNGUA


LÍNGUA é uma microssérie de Carolina Muait, Gabriel Abreu e Patrick Sampaio, com realização do BRECHA e produção associada da Cajamanga e da Interseção.

A série narra fragmentos da vida de 9 jovens adultos da cidade do Rio de Janeiro nascidos nas décadas de 1980 e 1990, personagens diversos em orientações sexuais, gêneros e origens, mas com frustrações comuns ao lidar com questões como amor, sexualidade, família, trabalho e preconceito. Um retrato ficcional da chamada “geração do esgotamento”.

Uma antologia, LÍNGUA tem cada episódio dedicado ao desenvolvimento de um ou mais personagens distintos, pessoas que aos poucos revelam-se interligadas, partes de uma mesma bolha social que, mesmo um tanto diversa, os une na sensação de incomunicabilidade e dificuldade de mudar suas vidas, padrões comportamentais e obstáculos político-estruturais.

Após gravações interrompidas devido à pandemia e diante de um cenário incerto, o BRECHA decidiu unir esforços com a Cajamanda e a Interseção para finalizar o material gravado até então e compartilhar com o público os episódios feitos antes do isolamento social.

Prefiro rir

Rio, 8 de janeiro de 2018

Hoje encontrei o caderno. Encontrei o caderno no fundo do armário, por acaso, enquanto você assistia televisão deitada na cama depois de jantar. Nas tuas letras geométricas marcadas pelo ofício de arquiteta li a primeira anotação nesse diário, o diário do meu primeiro ano de vida: “Nasci às 21:15h com 3,650kg e 50cm de comprimento”. Leio essa e outras entradas cotidianas nas páginas amareladas pelo tempo. O registro da primeira vez que sorri, de um dente que despontou antes da hora, do doutor que disse que faço parte do grupo de 10% dos bebês mais altos do país. As palavras são tuas, mas quem fala sou eu. Encontrei o caderno guardado no fundo do armário e nele essa correspondência secreta em que mãe e filho dão voz um ao outro, em que você evoca minha primeira subjetividade, e eu lhe outorgo a experiência materna e uma nova identidade. Leio minhas próprias memórias e acho que consigo te escutar, como se você falasse de mim, para mim, a partir de mim, como se ainda habitássemos um mesmo corpo. Leio e acho que escuto a tua voz, uma voz de que já não me lembro mais. Daqui decidi escrever esta carta que agora te envio para te restituir da fala que você perdeu. Escrevo e te envio essas páginas porque quem está aqui comigo não é mais minha mãe e porque daqui não enxergo mais as interseções entre o teu corpo e a tua mente. O corpo hoje é um corpo assistido, passivo, pedindo socorro, é um corpo alimentado, asseado, exercitado à força. Tua mente ficou na memória dos outros e hoje só se manifesta em resquícios, como nas poucas vezes em que você sorri e me pergunto se é a última vez. Ou ainda quando você, andando pela casa à tarde, para ao lado da porta do meu antigo quarto e arrisca a cabeça para dentro, em busca de qualquer lembrança. Em algum canto recôndito da memória você sabe o que se passou aqui, você intui que dentro desse pequeno espaço assistiu sua cria crescer. Mas com a mesma casualidade com que procura, curiosa, algo que lhe pertença, abandona logo essa busca inútil e segue seu vago caminho. Escrevo e envio essa carta para o momento de meu nascimento, em 1993, buscando o resgate de uma personalidade esvaída. Quem é você? Ou talvez já, quem foi você? Você ainda é? O que te define então é a tua sanidade, as tuas faculdades mentais, o teu ofício de arquiteta, teu papel de mãe? Ou só você aqui, sentada, olhando para o nada, para tudo, como uma criança que, como eu, acaba de nascer? Te escrevo no momento de meu nascimento para dizer que encontrei o caderno no fundo do armário e que ainda me lembro de você. Que você sobrevive, mesmo que não saiba disso. Em outra linha no antigo diário, encontro: “Estou danado, parece que comecei a descobrir o mundo de uns dias para cá. Entendo tudo o que falam comigo, se não sei alguma coisa é só me mostrar que não esqueço mais. Falo muito, uma língua que só eu entendo.” Pergunto-me se você realmente não compreendia essa minha língua. Se ali, enquanto você registrava diariamente minha descoberta do mundo, já não ouvia, na tua própria voz, a minha. Se hoje não está, nesse mesmo idioma em comum, nossa única possibilidade de um diálogo. Escrevo e envio essa carta para você para tentar encontrar, em minha própria voz, a tua.

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“Prefiro rir”
vídeo-instalação
– 2018

Texto e imagens da exposição Formação e Deformação na EAV Parque Lage (2018)
(exposição final dos alunos do Programa de Formação e Deformação)
catálogo da exposição

narremas

she actively sought the feeling of déjà vu

I’ve lost count of my unfinished businesses

emotional resources were scarce

she then revealed her favorite quality in women was their masculinity

her eyes were determined as the origin of the fire


da janela ele via a vida passando-o pra trás

“narremas”
ensaio visual
– 2018