A chuva forte caindo, incessante, paralisando as ruas, a cidade, o mundo inteiro. A água transborda de um céu incolor sobre a marquise das lojas, sobre todas as sujas esquinas, sobre os semáforos agora faróis. Os bueiros e os guarda-chuvas e os para-brisas não dão conta da tarde alagada, as pessoas se afugentam em saltos apressados, curvadas debaixo de suas bolsas, com medo, medo do fenômeno que apesar de recorrente em suas vidas ainda espanta, pois afinal é fenômeno, manifestação natural que pega em flagrante animais artificiais que se locomovem em máquinas, que andam vestidos, que pavimentam a terra, que aterram os mares, que sistematizam a fluência dos rios, que reorientam os raios, mas que são incapazes de impedir a chuva – a chuva há de cair e cai molhando tudo que foi feito seco, deixando todos perplexos, fazendo com que se retirem e aguardem enquanto o temporal banha o asfalto quente e os telhados áridos e toda gente sóbria, como um chuveiro ligado sobre a ceia posta sobre uma mesa de jantar ou um balde entornado sobre uma criança já debaixo de suas cobertas, pronta para dormir.
Escorrendo pelo para-brisa, as gotas borradas pelo vermelho do freio adiante alertam que pare, que o trafego, que o trânsito, o trânsito, o rádio ligado, que o trânsito, o trânsito, que a voz do Brasil, que o trânsito, desligo, que o trânsito, silêncio, o trânsito, que o trânsito, transito pelos meus pensamentos e o trânsito, a marcha automática e só os dois pedais, e o trânsito, e o tédio, o assento de couro com as abas laterais que aconchegam os rins e aparam o torso, o volante agarrado por baixo enquanto os antebraços repousam sobre as coxas, o volante de couro, o painel de couro, o interior das portas de couro, é tudo de couro, um couro preto, couro falso, que cheira à química, que cheira a produto de limpeza, os tapetes de papel amarelo sobre o chão para evitar a sujeira, o tubinho de álcool gel com cheiro de rosas depositado no porta-copos, um carro asseado, puro, antisséptico, e eu um corpo estranho, protegido sobre o teto do veículo, esse veículo que não me pertence, que me foi emprestado, e que por isso me põe em dívida, que me vexa e humilha, uma posse alheia, um ativo valioso na declaração do imposto de renda, uma propriedade privada, uma herança, um direito aos bens, um patrimônio a um ente querido, todo um legado sobre quatro rodas, esse sim, meu legado, predestinado, reservado e fadado a mim, não obstante a desigualdade social, a má distribuição de renda, o salário mais mínimo, os direitos humanos, nem o trânsito, esse carro é meu. Não o quero, mas é meu. Incondicionalmente pertence a mim, está atestado no sobrenome que carrego, aquele que divido com outros tantos homens que vieram antes de mim, cujas vidas se realizaram na direção da minha, o sobrenome que convoca e ordena, que se sobrepõe a todos os outros nomes, que designa um propósito a cumprir, que demanda uma posição, que exige um comportamento. O nome da família. O nome que me afiança esse mesmo carro, que denomina a rota a se tomar, que indica o momento de diminuir a velocidade, que estabelece o instante de ligar a seta e entrar à direita. Abaixo o vidro para provar a alcunha e logo abrem a cancela, o portal de ferro, dão-me um boa noite numa incontinência irrisória, sigo escuridão a dentro, os paralelepípedos irregulares chacoalhando-me a cabeça, por que não asfaltam essa merda de uma vez?, e estaciono logo em frente à casa.
“Pinheiros” (trecho 4)
gravação de leitura
– 2018