As sacolas do mercado pesam sobre as mãos delicadas – talvez tenha subestimado a distância do percurso, talvez devesse ter vindo de carro, pegado um taxi. Mas está sol, uma manhã de sábado afinal, a posta de salmão, os figos frescos e as nozes pecan, o almoço com a família que aos poucos acorda em casa. Ela toma o caminho de sempre, o caminho tranquilo, fresco, cheio de sombra, coberto pela copa das árvores repleta de frestas de luz que malham as calçadas, como o pelo de uma onça, ou o chão de uma discoteca. Ela caminha distraída pela própria sorte, desviando os sapatos das falhas na geometria das pedras portuguesas. Logo mais a frente percebe um amontoado contra a mureta de um prédio, cobertas velhas e papelões descartados, uma sacola de plástico repleta de trapos. Ela sente os músculos dos ombros contraírem-se – involuntariamente – e as compras pesam ainda mais, a pele fina das palmas suadas ficando cada vez mais vermelhas. Acerta sua trajetória em alguns centímetros à esquerda como tantas outras vezes, especialmente nessa época mais fria do ano em que encontros como esse tornam-se mais frequente. Mais à frente, sua casa está do outro lado da rua, mas ela, correta, evita atravessar a pista. A família espera e ela tenta passar reto ao lado do volume disforme abandonado à calçada, mas é então tomada de um súbito horror quando debaixo dos panos secos sai um pé. Seu olhar é preso: a pele negra ressecada em volta dos tornozelos, as unhas escurecidas, a couraça branca da sola toda rachada como as pedras portuguesas. Ela vê o pé, impossível não ver o pé, vê o corpo murcho sobre as cobertas sujas, a carne encardida do pé, o membro fétido, uma força indigente tomando a calçada tranquila, fresca, cheia de sombra, um grande pé negro no meio do caminho. Enfim desvia o olhar, passa reto e corre à casa, à família, ao almoço do final de semana, decidida de que a partir de agora sempre atravessará a rua quando necessário.
-2018