s.t.

diziam, Gabriel é teu nome
o papel nas mãos
nas próprias mãos obscuras
nas mãos amassadas
vinha escrito, Gabriel
nas ranhuras das palmas
a certidão do nascimento
datando dia mês e ano
além de horário e local
do começo de sua vida
por mais desconhecido que fosse
mesmo que já não mais se lembrasse
eles diziam, teu nome é Gabriel

-2018

s.t.

ontem passou o dia chovendo
e nos muros eu lia que “a rua
chora”, chora pros lados,
pra todos os cantos,
chora das próprias calçadas,
exsuda pelas ranhuras entre
os paralelepípedo um chorume,
um pranto fétido que não acaba,
que deixa na boca um gosto de lixo,
que afoga todos em uma lamúria
infinita. ontem passou o dia chovendo
e nós aqui não estamos preparados
pra tanta tristeza.

-2018

s.t.

caminho, trôpego,
a voz rouca de uma
tia-avó que só fumava
de quem nunca mais soube.
tropeço,
a laranjeira que crescia
no jardim da infância
que podaram até
às raízes.
reconheço os cômodos
da casa que já não
é mais a mesma,
que já definha como
tudo, como eu mesmo,
e sigo, em frente,
na via de mão dupla
da memória.

-2018

s.t.

subi até o terraço segurando tua mão
você na frente me puxando escadas acima
insistindo que o nascer do sol é mais bonito
que o se pôr
minhas pernas sonolentas acompanhando
as tuas até chegarmos na laje coberta de estrelas
onde você me agarrou de frio e ficou
debaixo dos meus braços enquanto o horizonte
se ascendia e eu sentia teu corpo
se aquecendo contra o meu
o calor ascendente da alvorada
secando o orvalho da tua pele
serenando os teus arrepios a medida
que o dia nascia para a gente

Quintino

na notícia do dia, uma linha dá conta da tragédia:
uma mulher e um homem estavam em casa
e foram atingidos por um deslizamento de terra
em Quintino.
em casa, no meio da madrugada, sob um céu em lampejos
dormiam uma mulher e um homem
debaixo de seus tetos, abrigados
depois do meio expediente de uma quarta-feira
de cinzas
em meio ao maior temporal
a um estágio de crise
à falta de energia e alagamentos
ao recorde histórico registrado
os dois dormiam na noite
mais clara do ano.

-2018

s.t.

                                        você
e eu
e ele

as tuas mãos finas
as pernas
grossas

os cabelos               tácitos

os teus beijos meus neles

um grande tran
çado uma     cruza

uma epopeia         na cama
de um de nós

em um nó de nós      três

-2018

s.t.

ele se sente todo rouge
quando pega o batom vermelho
com os dedos rudes e arrasta pelos
lábios ásperos a pasta sólida e untuosa que o
transforma e esquenta em
cor do mesmo fogo que sente enquanto
desliza com força sobre os beiços másculos
o bastão rubro que destroça
contra a boca suja e os dentes brancos e a língua tosca
mastigando no espelho a própria imagem errada

-2018

sombra

deslizo-me aos teus pés
inquieta
silenciosa
sou ausência e
ainda assim
tua própria imagem
tua silhueta, teus movimentos
teu corpo opaco
grosso, delgado
sou apenas o resultado
de uma intercepção
um espírito desencarnado
se um traço bem definido
ou um vulto manchado
estou sempre, haja luz,
contigo

-2018

foreclosure

As sacolas do mercado pesam sobre as mãos delicadas – talvez tenha subestimado a distância do percurso, talvez devesse ter vindo de carro, pegado um taxi. Mas está sol, uma manhã de sábado afinal, a posta de salmão, os figos frescos e as nozes pecan, o almoço com a família que aos poucos acorda em casa. Ela toma o caminho de sempre, o caminho tranquilo, fresco, cheio de sombra, coberto pela copa das árvores repleta de frestas de luz que malham as calçadas, como o pelo de uma onça, ou o chão de uma discoteca. Ela caminha distraída pela própria sorte, desviando os sapatos das falhas na geometria das pedras portuguesas. Logo mais a frente percebe um amontoado contra a mureta de um prédio, cobertas velhas e papelões descartados, uma sacola de plástico repleta de trapos. Ela sente os músculos dos ombros contraírem-se – involuntariamente – e as compras pesam ainda mais, a pele fina das palmas suadas ficando cada vez mais vermelhas. Acerta sua trajetória em alguns centímetros à esquerda como tantas outras vezes, especialmente nessa época mais fria do ano em que encontros como esse tornam-se mais frequente. Mais à frente, sua casa está do outro lado da rua, mas ela, correta, evita atravessar a pista. A família espera e ela tenta passar reto ao lado do volume disforme abandonado à calçada, mas é então tomada de um súbito horror quando debaixo dos panos secos sai um pé. Seu olhar é preso: a pele negra ressecada em volta dos tornozelos, as unhas escurecidas, a couraça branca da sola toda rachada como as pedras portuguesas. Ela vê o pé, impossível não ver o pé, vê o corpo murcho sobre as cobertas sujas, a carne encardida do pé, o membro fétido, uma força indigente tomando a calçada tranquila, fresca, cheia de sombra, um grande pé negro no meio do caminho. Enfim desvia o olhar, passa reto e corre à casa, à família, ao almoço do final de semana, decidida de que a partir de agora sempre atravessará a rua quando necessário.

-2018

carta de b.

amigo,
que importância?
às vezes acredito que muita
às vezes que nada
As coisas, agora, me ouve:
tenho os olhos abertos
e tudo gira tão depressa
sei
tenho os olhos fechados.

é difícil estar no mundo
(sera que sempre?)
grande demais
rotinas muitas
aqui posso ser toda
em partículas, amigo
capaz de algo mais
do que o agora

é um espelho enferrujado
a tua existência.

verdade que envelhecemos?
será justo
assim
ainda
um espirito qualquer que fale conosco?
minhas pernas andam
cansadas
tola barriga que sempre caiu sobre a cabeça fraca
tenho medo de acordar
de chegar a hora para sempre
olho pro sol apressado
vejo absurdo
vejo beleza
uma garrafa do lado da minha cama
e nas primeiras linhas chorei
de tristeza, melancolia e saudade.
Mas dividiria contigo
um abraço
forte,
apertado,
demorado.
escreve.

-2018